15.6.10

A quem serve calar as vozes discordantes?

É em muitos aspectos curiosa a notícia publicada no sítio de internet da Associação Pró-Ordem dos Psicólogos a 29 de Janeiro de 2010. Torna-se útil referenciar a notícia, pois esta induz em erro quem merece estar melhor informado.

Intitula-se «A quem serve a suposta agitação actual?». A agitação não tem nada de suposição, é bem real, e representa quer a desilusão e angústia causadas pelo processo encetado pela Comissão Instaladora da Ordem quer a tentativa de solução dos problemas por esta criados a várias pessoas e entidades, a saber:

- aos psicólogos que com a inscrição na ordem automaticamente deixaram de ser psicólogos;
- aos utentes dos seus serviços, actuais e/ou passados, que têm e/ou tiveram um psicólogo e agora têm um estagiário;
- aos psicólogos que tiveram oportunidades de exercício profissional para serem membros efectivos mas que não concordam com a desqualificação retroactiva feita aos seus colegas de profissão, muitas vezes até de curso;
- às instituições de ensino superior que vêem agora os títulos que atribuíram anulados e os estágios curriculares que conceberam como prática supervisionada destituídos de valor (ou com o valor de 6 meses – a diferença de duração no estágio da ordem entre quem fez ou não o curricular);
- ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior que vê agora as competências tutelares que exerceu desacreditadas;
- ao Ministério do Trabalho e da Solidariedade Social que vê agora as carteiras profissionais que emitiu anuladas (umas que, ao contrário do que alguns colegas sabiam, faziam parte obrigatória da regulamentação da profissão em vigor há 4 décadas);
- ao Ministério da Saúde, que se viu no papel de tutela de uma associação que pretende abranger profissionais que na sua maioria nem ligados à saúde estão e que porventura inadvertidamente fez aprovar estatutos inconstitucionais;
- serve a agitação, finalmente, à imagem da classe profissional e da profissão em Portugal, severamente afectadas pela acção que presidiu à instalação da Ordem.

É atribuída ao Sindicato Nacional dos Psicólogos a autoria de duas petições e uma convocatória para uma reunião onde se iriam «discutir assuntos da Ordem». Estamos em crer que o autor desta notícia não se refere à «Petição para a não desqualificação retroactiva de psicólogos por inscrição na recém-criada ordem», pois nesse caso significaria que fala daquilo que desconhece e a elevada estima e consideração que nos merece torna essa eventualidade altamente improvável. Nenhum dos autores desta petição está ou esteve associado ao SNP. Aliás, deste apenas se podem queixar, pois solicitaram apoio na divulgação da iniciativa e não o obtiveram. Sobre o desconto na jóia de inscrição de que beneficiam os associados da pró-ordem, sobre protocolos estabelecidos por entidades consigo próprias, o Movimento Continuo Psicólogo nunca se pronunciou nem cremos que o venha a fazer. Louvamos o esforço dos colegas, mas não podemos lamentavelmente louvar o resultado.

Ao longo da notícia é salientado o longo esforço, em termos de trabalho e finanças, para a criação da ordem, como se aos promotores não pudesse ser atribuída outra intenção senão a de uma dádiva abnegada. A consulta à constituição dos órgãos da associação pró-ordem comparativamente com a da comissão instaladora da ordem (e com, ao que tudo aponta, a de uma mais que provável lista aos órgãos da ordem), indica que pode não ser bem esse o caso. Criar uma ordem a todo o custo e com toda a pressa possível, não é infelizmente sinónimo de criar nos moldes desejáveis. Foi uma vitória? Certamente. Mas uma vitória sem glória e, pior, com mácula. Se se quer uma ordem, queira-se uma dignificada e dignificante, não uma que apenas permita responder a necessidades e interesses individuais ou de pequenos grupos. Ao longo de mais de um ano houve tempo suficiente para ser rectificado o erro, e do erro era impossível não haver consciência por parte de quem o cometeu. Ao Movimento Continuo Psicólogo nenhuma verba foi, é ou será atribuída para a defesa desse objectivo, devolvendo a legalidade e a justiça à situação absurda criada. Não há inscrições nem jóias de associados pró-legalidade ou pró-justiça.

É também curioso que seja feita a apologia da preocupação com «as carreiras dos psicólogos, com as questões de remuneração, com as condições de emprego dos psicólogos, com a legítima reivindicação da habilitação própria para leccionar Psicologia no ensino secundário», com a «defesa dos legítimos interesses de uma classe profissional que tem sido explorada e maltratada», quando os direitos básicos de colegas de profissão são espezinhados por quem quer constituir uma Ordem à medida de apenas alguns. Não é pois de estranhar que nos estatutos sejam atribuições desta a defesa dos interesses dos utentes e da profissão em abstracto, não os dos psicólogos, porventura meros incómodos. Fala-se do reconhecimento que deve ter quem estudou e se empenhou em qualificar, quando as qualificações académicas em nada são tidas em conta no processo de «re-reconhecimento» pela Ordem como psicólogo ou como estagiário, apenas o exercício profissional pré-existente. Sobre o esforço e os sacrifícios para se ter acesso a uma profissão que depois de concretizado é retirado, cada um saberá melhor do que ninguém a dimensão assumida pelos seus.

O «clima de contestação» a que a notícia alude, no que a esta petição e movimento diz respeito em particular, não é contra a Ordem, sim contra “uma qualquer Ordem” e em particular contra os moldes desta, e tão pouco é «fabricado artificialmente», pois os psicólogos afectados são pessoas, não artifícios, com famílias, com bom nome e reputação, com imagem pessoal e profissional, com encargos e responsabilidades, a merecerem mais e melhor respeito por parte de quem os afecta.

A legitimidade do processo eleitoral é irremediavelmente questionada quando o processo que o enforma tudo faz para a isso se prestar. Que legitimidade tem um processo eleitoral que reúne nos seus cadernos 41% apenas dos psicólogos actuais inscritos, retirando aos outros o seu direito de participação? Que legitimidade tem um processo que apenas permite reclamar dos cadernos electronicamente e num máximo de 150 caracteres, respondendo em massa também electronicamente e com respostas estereotipadas? Que legitimidade tem um processo eleitoral que decorre fora do período e dos prazos regulamentarmente previstos sem se assumir como eleição extraordinária? A ser verdade que Portugal é realmente uma democracia e que os fantasmas ditatoriais se esfumaram já do inconsciente colectivo (e oxalá individual), ainda bem que se pode questionar tais legitimidades!

A acção construtiva desta petição e do movimento independente de psicólogos que a subjaz serve de contraponto à acção destrutiva dos moldes com que a Ordem está a ser criada. Defendemos toda a classe profissional, não só quem teve oportunidades de emprego ou de exercício por conta própria, e fazemo-lo sem qualquer intenção de pertencer a órgãos eleitos! Não há nenhuma outra agenda.

Em dois aspectos estamos de acordo: «Tentar passar uma esponja sobre o passado é um erro gigantesco, que não pode ser consentido». O passado é o que fez de todos nós colegas, psicólogos, e que não deve ser retroactivamente apagado seja por quem for. E sim, que haja «uma Ordem para todos os profissionais deste país»!

Movimento Continuo Psicólogo

Texto originalmente publicado no blogue da petição a 19/03/2010.